quinta-feira, 26 de março de 2009

Eu quero fazer minha alma


"Não entrei na trilha dos saltimbancos por acaso, nem para ser um reles fazedor de graça. Eu queria consagrar a minha vida através de um imperioso apelo vocacional. Mas as pessoas, com suas receitas de sucesso, sem nenhum escrúpulo, sem nenhuma sensibilidade, vieram me falar de mil e um palhaços geniais. Tem um que comove multidões ao aprisionar um raio de sol pra levar pra casa...Tem um que faz balões de gás dançarem alegremente ao som de seu trompete...Tem um que ridicularizou um tirano, um assassino sanguinário que queria ser o senhor absoluto do mundo...Tem um comprido, de calça na canela, arcado para a frente devido ao pesado fardo da indignação contra a mecanização imposta ao homem moderno...Tem o magro sonso...E o gordo ingênuo e bravo...Tem os que dão piruetas, saltam, dão cambalhotas, levam bofetões...Tem os que tocam música clássica em garrafas vazias penduradas num varal...Tem outro... e outro... e outro...Tem aquele pobre palhaço louco que andava pelas igrejas jogando malabares diante das imagens da Santa Maria; esse, me disseram, morreu enforcado na cruz do Senhor Jesus Cristo, numa catedral gótica...Escutei humilde a história de cada um desses incríveis artistas que viajavam pelas vias da loucura. Saber desses palhaços...para mim, Bobo Plin, um palhacinho de merda que começava a engatinhar nos picadeiros mal iluminados das espeluncas...saber desses palhaços só serviu para me tolher. Quanto mais eu sabia deles, mais e mais Bobo Plin, o palhaço que eu queria ser, se enroscava nas minhas entranhas. A referência esmagava minha intuição e provocava auto-censura. A comparação, maldita inimiga da igualdade, fazia dos magníficos histriões elementos inibidores da minha criatividade. Agora, Bobo Plin não quer saber da façanha desses belos palhaços. Não quer vê-los. Nem quer saber de seus bigodes, sapatões, guizos, pompoms, bolas, balões e babados. A magia dos grandes artistas não pode ser ensinada; são segredos que se aprende com o coração. Essa magia se manifesta quando se resolve fazer a própria alma. Para Bobo Plin se irmanar com os grandes palhaços que luziram nos palcos e picadeiros tem que se esquecer deles para sempre. Não pode recolher nenhuma indicação deixada no caminho. Tem que andar sem bússola, na mais tenebrosa escuridão. Qualquer brilho, qualquer estrela, qualquer sol, qualquer referencial vira um ponto hipnótico embrutecedor. E eu quero fazer a minha alma." Plínio Marcos

quinta-feira, 19 de março de 2009

Alma Nova

Zeca Baleiro e Fernando Abreu

Sempre que te vejo assim
Linda, nua
E um pouco nervosa
Minha velha alma
Cria alma nova
Quer voar pela boca
Quer sair por aí...
E eu digo
Calma alma minha
Calminha!
Ainda não é hora
De partir...
Então ficamos
Minha alma e eu
Olhando o corpo teu
Sem entender...
Como é que a alma
Entra nessa história
Afinal o amor
É tão carnal...
Eu bem que tento
Tento entender
Mas a minha alma
Não quer nem saber
Só quer entrar em você
Como tantas vezes
Já me viu fazer...
E eu digo
Calma alma minha
Calminha!Você tem muito
Que aprender...

quarta-feira, 18 de março de 2009

Quiméricos - Cecília Veby

Sufocante noite.

Os olhos da alva Quimera
Empapados em café e açoite
Pousam nas falas bacantes,
Barrocas e delirantes,
Buscam um momento de brisa,
Um lampejo de vento,
Um lugar na frisa
No peito de Baco
Que se banha em vinho
E em velas.
Feito um navio desgarrado
Que ouve o mar logo ao lado
Despe-se ela, sem alarido,
Pedaços no taco tecido
Bicho nu e selvagem
Leão-cabra-serpente
Móvel de canto, dormente
Quase que uma folhagem
Acuada dentro do livro
Vermelho, um palmo cortante
Os cachos molhados de Baco
Seguem as pistas da fera
Deitam-se sem medo no fogo
E sussurram, na voz de Dante:
- Vem.
Acalmo-te Quimera.

Jundiaí, 17 de março de 2009.



terça-feira, 17 de março de 2009

Tempestade de Almas - Clarice Lispector





Ah, se eu sei, não nascia, ah, se eu sei, não nascia. A loucura é vizinha da mais cruel sensatez. Engulo a loucura porque ela me alucina calmamente. O anel que tu me deste era de vidro e se quebrou e o amor não acabou, mas em lugar de, o ódio dos que amam. A cadeira me é um objeto. Inútil enquanto a olho. Diga-me por favor que horas são para eu saber que estou vivendo nesta hora. A criatividade é desencadeada por um germe e eu não tenho hoje esse germe mas tenho incipiente a loucura que em si mesma é criação válida. Nada mais tenho a ver com a validez das coisas. Estou liberta ou perdida. Vou-lhes contar um segredo: a vida é mortal. Nós mantemos esse segredo em mutismo cada um diante de si mesmo porque convém, senão seria tornar cada instante mortal. O objeto cadeira sempre me interessou. Olho esta que é antiga, comprada num antiquário, e estilo império; não se poderia imaginar maior simplicidade de linhas, contrastando com o assento de feltro vermelho. Amo os objetos à medida que eles não me amam. Mas se não compreendo o que escrevo a culpa não é minha. Tenho que falar pois falar salva. Mas não tenho uma só palavra a dizer. As palavras já ditas me amordaçaram a boca. O que é que uma pessoa diz à outra? Fora "como vai?" Se desse a loucura da franqueza, que diriam as pessoas às outras? E o pior é o que se diria uma pessoa a si mesma, mas seria a salvação, embora a franqueza seja determinada no nível consciente e o terror da franqueza vem da parte que tem no vastíssimo inconsciente que me liga ao mundo e à criador inconsciência do mundo. Hoje é dia de muita estrela no céu, pelo menos assim promete esta tarde triste que uma palavra humana salvaria.
Abro bem os olhos, e não adianta: apenas vejo. Mas o segredo, este não vejo nem sinto. A eletrola está quebrada e não viver com música é trair a condição humana que é cercada de música. Aliás, música é uma abstração do pensamento, falo de Bach, de Vivaldi, de Haendel. Só posso escrever se estiver livre, e livre de censura, senão sucumbo. Olho a cadeira estilo império e dessa vez foi como se ela também me tivesse olhado e visto. O futuro é meu enquanto eu viver. No futuro vai ter mais tempo de viver, e, de cambulhada escrever. No futuro, se diz: se eu sei, eu não nascia. Marli de Oliveira, eu não escrevo cartas pra você porque só sei ser íntima. Aliás eu só sei em todas as circunstâncias ser íntima: por isso sou mais uma calada. Tudo o que nunca se fez, far-se-á um dia? O futuro da tecnologia ameaça destruir tudo o que é humano no homem, mas a tecnologia não atinge a loucura; e nela então o humano do homem se refugia. Vejo as flores na jarra: são flores do campo, nascidas sem se plantar, são lindas e amarelas. Mas minha cozinheira disse: mas que flores feias. Só porque é difícil compreender e amar o que é espontâneo e franciscano. Entender o difícil não é vantagem, mas amar o que é fácil de se amar é uma grande subida na escala humana. Quantas mentiras sou obrigada a dar. Mas comigo mesma é que eu queria não ser obrigada a mentir. Senão, o que me resta? A verdade é o resíduo final de todas as coisas, e no meu inconsciente está a verdade que é a mesma do mundo. A Lua é, como diria Paul Éluard, éclatante de silence. Hoje não sei se vamos ter Lua visível pois já se torna tarde e não a vejo no céu. Uma vez eu olhei de noite para o céu circunscrevendo-o com a cabeça deitada para trás, e fiquei tonta de tantas estrelas que se vêem no campo, pois, o céu do campo é limpo. Não há lógica, se se for pensar um pouco, na ilogicidade perfeitamente equilibrada da natureza. Da natureza humana também. O que seria do mundo, do cosmos, se o homem não existisse. Se eu pudesse escrever sempre assim como estou escrevendo agora eu estaria em plena tempestade de cérebro que significa brainstorm. Quem terá inventado a cadeira? Alguém com amor por si mesmo. Inventou então um maior conforto para o seu corpo. Depois os séculos se seguiram e nunca mais ninguém prestou realmente atenção a uma cadeira, pois usá-la é apenas automático. É preciso ter coragem para fazer um brainstorm: nunca se sabe o que pode vir a nos assustar. O monstro sagrado morreu: em seu lugar nasceu uma menina que era sozinha. Bem sei que terei de parar, não por causa de falta de palavras, mas porque essas coisas, e sobretudo as que eu só pensei e não escrevi, não se usam publicar em jornais.

segunda-feira, 16 de março de 2009

Dalton Trevisan

- Não fale, amor. Cada palavra, um beijo a menos.

quinta-feira, 12 de março de 2009

quarta-feira, 11 de março de 2009

terça-feira, 10 de março de 2009

Florbela Espanca

Horas rubras

Horas profundas, lentas e caladas
Feitas de beijos sensuais e ardentes,
De noites de volúpia, noites quentes
Onde há risos de virgens desmaiadas…

Ouço as olaias rindo desgrenhadas…
Tombam astros em fogo, astros dementes.
E do luar os beijos languescentes
São pedaços de prata p’las estradas…

Os meus lábios são brancos como lagos…
Os meus braços são leves como afagos,
Vestiu-os o luar de sedas puras…

Sou chama e neve branca misteriosa…
E sou talvez, na noite voluptuosa,
Ó meu Poeta, o beijo que procuras!

segunda-feira, 9 de março de 2009

Elisa Lucinda


COR-RESPONDÊNCIA
Elisa Lucinda

Remeta-me os dedos
em vez de cartas de amor
que nunca escreves
que nunca recebo.
Passeiam em mim estas tardes
que parecem repetir
o amor bem feito
que voce tinha mania de fazer comigo.
Não sei amigo
se era o seu jeito
ou de propósito
mas era bom, sempre bom
e assanhava as tardes.
Refaça o verso
que mantinha sempre tesa
a minha rima
firme
confirme
o ardor dessas jorradas
de versos que nos bolinaram os dois
a dois.
Pense em mim
e me visite no correio
de pombos onde a gente se confunde
Repito:
Se meta na minha vida
outra vez meta
Remeta.

***

Detalhe da escultura "The rape of Proserpina", 1621-22 - Gian Lorenzo Bernini - Galleria Borghese, Roma

sexta-feira, 6 de março de 2009

Espiadela

Foto de Gabriel Santos

"Sou um menino que vê o amor pelo buraco da fechadura. Nunca fui outra coisa. Nasci menino, hei de morrer menino. E o buraco da fechadura é, realmente, a minha ótica de ficcionista. Sou (e sempre fui) um anjo pornográfico. "
Nelson Rodrigues


The Reader


"Quo, quo scelesti ruitis? Aut dexteris
aptantur enses condit?
parumne campis atque Neptuno super fusum est Latini sanguinis,
non ut superba inuidae Carthaginis
Romanus arces uret,
intactus aut Britannus ut descenderet
sacra catenatus uia,
sed ut secundum uota Parthorum sua
urbs haec periret dextera?
Neque hic lupis mos nec fuit leonibus
umquam nisi in díspar feris.
Furorne caecus na rapit uis acrior
an culpa? Responsum date.
Tacent, et albus ora pallor inficit
mentesque perculsae stupent.
Sic est: acerba fata Romanos agunt
scelusque fraternae necis,
ut inmerentis fluxit in terram Remi
sacer nepotibus cruor.
Horácio
**
Para onde? Para onde vos lançaste impiedosos? Ou por que as
espadas, que estavam guardadas, estão coladas em vossas mãos?
Acaso foi derramado pouco de sangue latino sobre os campos e
sobre o mar de Netuno, não para que o povo romano destruísse
as cidadelas soberbas da invejosa Cartago, ou para que o povo
britânico, que não se subjuga, descesse a via sacra acorrentado,
mas para que, segundo o desejo dos partos, esta cidade perecesse
pela sua própria mão? Jamais houve este costume entre os lobos
nem entre os leões ferozes em tempo algum, se não
contra uma espécie diferente. Acaso a cega fúria, ou a força
mais violenta os arrebata? Ou a culpa? Dai vós a resposta! Ca-
lam-se, e a alva palidez impregna a face, e as consciências
abaladas ficam estupefatas. Assim é: destinos cruéis perse-
guem os romanos, e o crime de morte violenta de irmãos, desde
que o sangue maldito aos descendentes do inocente
Remo derramou pela terra .

The Reader - Kate Winslet and David Kross. Directed by: Stephen Daldry

quinta-feira, 5 de março de 2009

Selvagem como o vento




Ideal é ter alguém que a gente admire, respeite, trepe bem e consiga tanto conversar quanto ficar em silêncio... O resto é projeção, transferência de frustrações, trauma de infância, sei lá... Ideal é ser bem comida!! E como são raríssimas as boas comidas, quando você encontra, acaba se apaixonando... e se junto com o sexo vem a cabeça, o coração, a beleza, o respeito. Aí, pronto...

O resto é sofrimento!

A gente se apaixona e começa a criticar tudo o que mais gostava no outro. Maldito medo do abandono...

A gente quer que o outro seja totalmente diferente daquilo que primeiro encantou porque só assim a gente se garante que não vai ser tão hedionda a dor do fim, porque, enfim, nem é mais aquela pessoa interessante por quem a gente se apaixonou... Detesto essa coisa burocrática das relações. Se você é mulher dele, então tem tais e tais funções; ele, por sua vez, tem aquelas e outras; você faz um gesto e espera que o outro retribua; você dá e quer de volta. Parece investimento financeiro... Tudo nessa vida já tem que ser tão calculado, projetado, administrado; tudo é lógico, acadêmico, tudo cartesiano.

Por que o amor não pode ser livre?
revolucionário? Irracional?
Anárquico?
Cada um responsável por si e todos felizes... Por que não pode ser uma eterna comemoração por ter encontrado, no meio de tantas possíveis combinações, tantas possibilidades, tantos corações, ter, enfim, encontrado um par?

***

Porra, mas aonde eu coloco tanta energia? O que eu faço com os meus sonhos? E na hora que eu morrer, quem é que vai me redimir das coisas que eu não fiz? Não,

prefiro pecar por excesso. Prefiro ser barroca.

Prefiro me desiludir um milhão de vezes e ter achado que era feliz outro milhão de vezes, a não sofrer e não sentir nada...

Acho até que tem um certo glamour no sofrimento... A gente fica mais magra, mais misteriosa, mais poeta...

Toda vez que eu tou péssima, as pessoas me dizem, nossa, como você tá bonita... E eu mal, virada de noites insones de saudade e sofrimento. Acho que eu não nasci pra ser feliz...
Mas eu vou mudar! Vou parar de sentir esse amor pequeno burguês, esse amor egoísta por você e vou amar todo mundo! Vou amar o porteiro do meu prédio, o frentista do posto, a mulher que pede esmola na rua, o caixa do supermercado, a manicure, vou amar...

Se eu puder dar um pouquinho do amor que eu sinto por você pra todo mundo que eu encontrar... Nossa!

Vai sobrar amor...

***
Trecho extraído do livro "Selvagem Como o Vento" de Tereza Freire.

Foto de Henri Cartier-Bresson

quarta-feira, 4 de março de 2009

Adorável Canalha - Carpinejar


É um defeito, mas nada mais delicioso do que ouvir de uma mulher: "CANALHA!"

Ser chamado de "canalha" por uma voz feminina é o domingo da língua portuguesa. O som reboa redondo. Os lábios da palavra são carnudos. Vontade de morder com os ouvidos. Aproximar-se da porta e apanhar a respiração do quarto pela fechadura.

Canalha, definitivo como um estampido, como um tapa.

Não ser chamado de canalha pela maldade, mas por mérito da malícia, como virtude da insinuação, pelo atrevimento sugestivo.

Não o canalha canalha, mas o ca-na-lha, sem repetição. Único.

Não o canalha que deixa a mulher; o canalha que permanece junto. O canalha adorável que ultrapassou o sinal vermelho para levá-la. O canalha que é rude, nunca por falta de educação, para acentuar a violência do amor. Canalha por opção, não devido a uma infelicidade e limitação intelectual. Canalha em nome da inteligência do corpo.

O canalha. Como um elogio. Um elogio para dizer que é impossível domesticar esse homem, é impossível conter, é impossível fugir dele. Canalha como pós-graduação do "sem-vergonha".

Bem diferente de crápula, que não é sensual e define o mau-caratismo indelével, ou de cafajeste, alguém que não presta nem para ser canalha, de índole egoísta e aproveitadora.

Eu me arrepio ao escutar canalha. Um canalha que significa o contrário do dicionário. Nem perca tempo consultando o Aurélio e o Houaiss, que não incluem o sentimento da pronúncia. Estou falando do canalha que suscita aproximação, abraço, desejo. Um canalha que é um pedido de casamento entre as vogais.

É pelas expressões que se define a segurança masculina. Sempre duvidei de homem que diz que vai fazer xixi. Xixi é coisa de criança. Eu não represo a gargalhada quando um amigo adulto e de vida feita comenta que vai fazer xixi. Imagino o cara sentado. Infantil como Ivo viu a uva. Já urinar é muito laboratorial. Prefiro mijar, direto, rápido e verdadeiro. As árvores mijam. Os relâmpagos mijam. Os cachorros mijam para demarcar seu território. Aliás, o correto é não anunciar, ir ao banheiro apenas, para evitar constrangimentos vocabulares.

Canalha funciona como uma agressão íntima. Uma agressão afetuosa. Uma provocação. Não se está concluindo, é uma pergunta. Canalha é uma interrogação gostosa.

Não ficarei triste se você esquecer meu nome, chame-me de canalha.

**
Crônica extraída do livro "Canalha!" de Fabrício Carpinejar - Editora Bertrand Brasil.

terça-feira, 3 de março de 2009

Estado




Estado
Cecília Veby

Meu sexo é um Estado
Independente
Com hino próprio, inflamado

Meu sexo é uma rota
De ópio
Num vasto campo arado

Meu sexo é uma nota
Estridente
Num grave corpo dobrado

Meu sexo não é parte
Integrante
Desse livro ilustrado

Meu sexo é somente outro
Um outro ser
Desgraçado.


Jundiaí, 03 de março de 2009.